quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Heterossexuais não praticantes #02


Eu estava parada outro dia na rua Humaitá, onde todo mundo sempre fica parado pela óbvia razão de que os carros não andam por ali. No meu carro tocava Legião Urbana, mesmo que eu já tivesse 30 anos e já pudesse ser considerada velha demais pra isso, ou nova demais pra saudosismos: na vida a gente nunca tem a idade certa pra quase nada. 

Aquele trajeto me deu a chance de ouvir “Faroeste caboclo” inteira diversas vezes: na primeira audição, detectei algumas falhas no roteiro. Na segunda, ainda mais. E assim foi que concluí que muitas coisas a respeito de Maria Lúcia e João do Santo Cristo ficaram mal resolvidas porque foram mal explicadas. João conhece Maria Lúcia quando vive uma fase de bandidagem. O amor instantâneo pela “menina linda” o redime de todos os pecados e ele volta a ser carpinteiro, além de prometer amor e filhos. O tempo passa e aparecem: um senhor de alta classe com dinheiro na mão, uma Winchester-22 e o traficante Jeremias. Nesse meio tempo, também, Santo Cristo volta pra casa com saudades de Maria Lúcia, e a encontra casada e mãe de um filho de, ora, Jeremias. Percebam: ainda que estejam nos anos 80 em Brasília, que lugar é esse onde Maria Lúcia mora que não consegue comunicação com Santo Cristo? Por mais que não houvesse internet e celular, as notícias de casamentos em cidades pequenas correm, não? E Jeremias, largou a mulher e filho nessa tal cidade e foi pra Brasília? Ou apenas engravidou Maria Lúcia sem lhe prometer nada, já que, como afirma a letra, “desvirginava mocinhas inocentes”? Quanto tempo Santo Cristo ficou longe do que diz ser sua casa? Onde ele mora? E se Maria Lúcia estava casada com outro, como é que Santo Cristo sabia o endereço dela? Se até aqui as coisas estão confusas, espere pelo final.
João está no duelo, do qual sairá para a cova, quando Maria Lúcia aparece trazendo a Winchester-22. E como é que Maria Lúcia, que morava sabe-se lá onde, sabe-se lá com quem, sabia: onde era a casa de João; onde João guardava a arma; e cadê o Pablo nessa hora? Os últimos versos da letra revelam que o João de Santo Cristo morreu sem realizar o sonho que queria quando chegou a Brasília: fazer um pedido ao presidente pra que ele pusesse fim ao sofrimento de toda essa gente sofrida. Mas se me lembro bem, e ouvi a música em looping, e era quinta-feira, quando o trânsito sempre dá um nó, na infância o Santo Cristo só pensava em ser bandido e queria mesmo ver o mar. Só para refrescar a memória: ele só vai parar no Planalto Central depois de um cafezinho que toma com um sujeito qualquer em Salvador, esta sim, cidade escolhida por ele, numa tentativa de entender os funcionamentos da vida. 

Todo esse turbilhão de pensamentos rodava pela minha cabeça, que tentava entender os funcionamentos da relação de João de Santo Cristo e Maria Lúcia, quando cheguei em casa e vi minha mãe em frente à TV calçando pantufas do VIPs Motel. 







quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Como se eu fosse flor


Na minha vida, algumas coisas vêm em lote e quando percebo tá todo mundo tirando o apêndice, lendo livros da Virginia Woolf, falando de Agamben e cortando leite e glúten da dieta. Uns são mais explicáveis que os outros, eu sei. Ainda assim, fico espantada com certas coisas. Por exemplo.

Sábado me atrasei horrores pro almoço com Marcelo, porque saí de casa de manhã cedo, porque andei o Leblon ida e volta e porque estava mais quente do que eu imaginava, mas principalmente porque o desodorante que eu usava fora descontinuado há uns meses, e aquele era o meu primeiro sábado com 30 anos e com um desodorante em teste. Por causa de todos os porquês expostos acima, eu estava paranoica e convencida de que exalava um cecê que só seria resolvido com banho. Ou com a minha mãe, pra quem telefonei da farmácia, em frente à seção de desodorantes.

A minha mãe é a pessoa mais cheirosa do mundo. Mesmo quando, eventualmente, ela sua, é batata: cheirosa. Por telefone, ela sugeriu que eu testasse o desodorante dela. A minha mãe é também a pessoa mais exagerada do mundo, e deixou no meu banheiro alguns exemplares tamanho jumbo do roll-on que ela usa há anos, porque ela tem mania de armazenar coisas, pro caso de. Se um dia o Ban Powder Fresh roll-on for descontinuado, provalvemente a gente abre uma vendinha aqui em casa.  

Quando saí do banho, Marcelo tinha mandado uma mensagem: “As pessoas já olham pra mim com pena no restaurante.” Garanti que estava a caminho e que a justificativa era boa. Uma vez sentada de frente pro Marcelo, contei pra ele o problema. E percebi o quanto eu estava vulnerável com tudo isso. A mulher de 30 anos não tem mais idade pra essas coisas. A falta do meu desodorante no mercado me causou um transtorno. Mesmo uma solidão, eu diria.

Até que ontem, depois de 5 dias usando o Ban Powder Fresh que minha mãe me deu, recebi um email de C., que fazia uma enquete: “Meninas, que desodorante vocês usam?” Ela dizia já ter trocado de marca 3 vezes naquela semana, e não confiava em mais nada além de talco e minâncora, mas acrescentava: “Nem sempre eu quero ficar com o sovaco branco. Quando vou sair à noite com o gatinho: não rola talco, pois não há tesão possível com a axila esbranquiçada.”

Em pouco tempo minha caixa de e-mails foi invadida por mulheres alteradas que tinham opiniões, dicas e ideias precisas sobre desodorantes. Jeanne, sempre ela, criou até um sistema de categorização, que julguei muito eficiente:

Verão intenso + compras na Sr. dos Passos : Ban Powder Fresh

Verão moderado/ Primavera + passeio no Aterro: Nivea Roll On Clear Skin 48hs

Outono/Inverno + café com Piauí: L'Occitane Desodorante Folhas de Oliva

Se nada funcionar, apesar de ser contra, tem muita gente colocando botox debaixo do braço.
 
M.P.: Depois de muitos testes, fiquei com o Dove-Pepino spray-geladinho. Suporto o cheiro mas fico intoxicada a cada aplicação. Uso com a consciência de um fumante.

Vou adotar o Outono/Inverno da Jeanne para dias menos críticos. Quem sabe não ganho mais uns dias de vida.

M. F.: Quanto a mim, não suporto roll-on. Tenho o habito de oscilar marcas, um mês Dove, outro Nivea, etc. Meu sovaco é barato. Mas continuo intrigada com Minâncora no sovaco.

C., que também detesta roll-on: sinto como se estivesse levando uma lambida no sovaco.

Sugeri leite de magnésia Philips e me desconectei do computador, porque o dia de trabalho acabara, porque fui nadar, porque fui à livraria e porque não tenho smartphone. Quando cheguei em casa, não sei muito bem como, o fórum de discussão tinha sido levemente desvirtuado e Jeanne enviava uma lista extensa com uma relação dos mais diversos produtos de beleza, ao mesmo tempo que dizia que Leite de Rosas era uma tradição em Miguel Pereira, onde ela passou a infância, e que era sentir esse cheiro pra lembrar de férias de julho e primeira menstruação. Logo depois ela dizia que usa um rímel à prova de fortes emoções, porque afinal equivocadas sempre seremos, borradas, jamais.

No meio do caminho, minha mãe me perguntou se eu estava gostando do novo desodorante, eu disse que sim, mas que de qualquer forma testaria outras marcas, porque vai que. Eu achava que torcicolo era a coisa mais ingrata da vida, tanto que, secretamente, comecei a desejar que cada desafeto meu sofresse um torcicolo no mínimo 3 vezes por mês. Não sei se desejar cecê é uma boa ideia, porque você pode sem querer encontrar a pessoa e ainda sobra pra você. Uma amiga que mora em Paris uma vez começou a desconfiar de que cecê era algo que se pegasse. Ela se cheirava loucamente no verão, pra ter certeza. A paranoia era tanta que, eventualmente, pedia pro namorado cheirá-la também. Eu também achei absurdo, mas deu tudo certo: ela não tinha cecê e eles se casaram.

Talvez o torcicolo seja mais seguro mesmo de se desejar nos momentos de fúria, afinal, em termos de sovaco, ao que tudo indica, não estamos tão sozinhos assim.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O meu coração


Tenho uma lista de medos, eu disse a ela. E para provar que não era curta, comecei a enumerar. O primeiro deles era o de pisar num cocô de cachorro enquanto estivesse a caminho do restaurante (levar um par extra de sapatilhas na bolsa). Se eu não gostasse de nada no cardápio, se fosse uma comida exótica, se servissem Pepsi em vez de Coca-cola. (Escolher um prato que não envolva verdes que possam ficar presos nos dentes.) Sorrir, ela disse, e ser engraçada, e isso eu sou, acho, e isso ele sabe, desconfio, é só confirmar. Se me faltar assunto, fazer perguntas. Se ele for quieto também. Tenho pavor dos silêncios, e a toda hora preciso desviar o olhar. E as mãos, o que fazer, e se se esbarram contra as dele antes do tempo? E que tempo é o certo? Pode ser que justo nesse dia eu acorde com torcicolo. E se eu espirrar tanto que precise sair correndo pra assoar o nariz. Fico tão vermelha de timidez, às vezes de álcool, às vezes fico até manchada, sinto a orelha ferver. E se me der vontade de bocejar, não por chatice, mas por sono em excesso, ou não dá pra ter sono nesses eventos? E se você passar muito bem por tudo isso, ela disse. Queria um tutorial. Deve ter na internet, mas diria que você não precisa. Vá de coração aberto.  

Mas e se eu tiver taquicardia, descompasso ou batucada e ele sentir quando me abraçar? 




domingo, 26 de agosto de 2012

Trago a pessoa amada em 3 dias


F., 2002:

Meu relacionamento com F. durou o tempo que duraram os intervalos que ele teve entre um namoro e outro. Eu já devia ter desconfiado dos meus dons da primeira vez que, percebendo o distanciamento dele, o ouvi dizer que não estava pronto pra engatar um romance sério, porque terminara um namoro complicado, e vivia um momento em que estava concentrado nos estudos, porque queria estudar medicina, porque o vestibular não estava fácil pra ninguém, porque bla bla bla enquanto eu me esforçava pra não tremer a voz. Duas semanas depois, soube que ele estava namorando. Anos depois, quando ele já estava se formando em economia e eu tinha largado o meu segundo emprego em moda, nos reencontramos numa festinha. Passamos aquela e outras 4 noites juntos, nos amando loucamente. Então um dia o telefone dele tocou sem resposta, e na semana seguinte eu soube que ele tinha encontrado seu grande amor, e em três ou quatro meses eles dividiam um apartamento no Humaitá que, ouvi dizer, era um pouco cafona.

R., 2006:

Ele veio brindar 2006 comigo, embora naquele réveillon eu estivesse a base de guaraná. Não fomos mais vistos na festa, não houve fotografias que registrassem nossos sorrisos porque nos afundamos um no outro naquela virada de ano. Ele reparou em tudo quanto se podia reparar em mim: da flor no cabelo ao anel no dedo do pé. Eu era hippie e não sabia. Por três semanas arrancamos suspiros por onde passamos. Ele segurava meu rosto como quem segura um troféu, e não havia dúvidas de que estávamos terrivelmente apaixonados um pelo outro. Era visível, as pessoas exclamavam. Um dia ele foi comprar cigarros e nunca mais voltou: eu fiquei na praia esperando ele chegar, telefonei, mergulhei, fiquei bronzeada, gorda, dormi demais. Meses se passaram até que um amigo esbarrasse com ele na rua, com uma menina a tiracolo. Tempos depois, soube que eles foram juntos pra França: ele pra cursar um mestrado em filosofia, ela com aliança no dedo esquerdo.

P., 2009:

Ele nunca disse que prestava, e eu nunca disse que queria alguma coisa séria, e todo mundo sabia que a trilha sonora do nosso encontro era uma que vivia no repeat do meu primeiro carro, e que dizia: “Don’t you know that you’re nothing more than a one stand?” e eu já tinha idade suficiente pra entender que essa coisa casual e passageira quase sempre me trazia problemas. Duramos duas noites, intercaladas por meses de distância e telefonemas intermináveis que esquentavam minha orelha, e que portanto potencializavam minhas chances de um câncer, isso porque ele estava coordenando uma obra no interior de sabe-se lá, e me contava dos dias, das pedaladas, e nunca falava em saudade, mas era o que parecia. Um dia, andando por Ipanema e ainda achando que estávamos virtual e telefonicamente juntos, dei de cara com ele numa pizzaria, sentado ao lado de uma mulher linda e loira. Nos cumprimentamos rapidamente e eu fui chorar no banheiro, e só saí dali quando o restaurante fechou e a faxineira me encontrou encolhida no canto. A loira e ele estão casados, e adotaram gatos. Três. Eu jamais poderia viver essa vida de espirros, me consolei.



Depois de tantos outros encontros que resultaram em casamentos, amores e filhos para eles, e caixas de kleenex e sessões de análise para mim, finalmente concluí, a reboque de Flaubert: Mãe Valéria de Oxossi, c’est moi.





sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Bilhetinho

De: Celia
Subject: Odete

Tive que demitir a Odete. A mulher que sofre fica deveras instável. 
Chegou hoje no trabalho totalmente embriagada. "De cerveja!" - disse ela. 
Dei-lhe um abraço e a justa causa. 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Trilha sonora

Depois de amargar uma ressaca e uma ventania desgovernada na praia,  Jeanne Duval me (nos) brinda com essa:

Uma seleção de músicas para serem ouvidas no táxi depois das 2:30 da manhã. A trilha sonora para aqueles momentos que:

- Você está bêbado demais para lembrar ao taxista de virar a direita no final da rua.
- Não pegou ninguém.
- Pegou quem não deveria.
- Pegou, mas mora com os pais.
- Ta obcecado pelo taxímetro porque ta com o dinheiro contado.
- Acha poético a luz dos postes nos pingos de chuva na janela
- Entrou numa bad e ta chorando baixinho em posição fetal no banco de trás.
- Ta dando aquela curtida casual no Facebook ou no Instagram
- Mandou um sms da derrota
- Sonha com um posto de conveniência no caminho, um Oliveira ou um Fornalha.
 Clique aqui para ouvir.  
 
 
 
 
 

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Voluntários da pátria




Ela abre a porta do conjugado deixando escapar Ernesto, o gato. Me abraça, resgata o gato no corredor, deposita-o em cima da cama, senta-se ao lado dele e dispara, com a voz embargada:

- Estou oca...

- Estou de férias! – emendo, porque naquele momento essa parecia uma boa combinação, porque significava que eu conseguiria ficar acordada até meia-noite e meia, porque até esse horário poderíamos cobrir todos os aspectos que a poderiam estar deixando vazia.

Ela se levanta, pega minha bolsa, pendura minha bolsa, pega a sacola do supermercado, me entrega a sacola do supermercado, alcança o maço de cigarros, se dirige até a janela, acende um Marlboro Light. Telefono para a minha avó, que mais uma vez me passa a receita dos biscoitos. Abro os armários à procura de potes e tabuleiros, ela toma a dianteira, e enquanto termina de fumar eu misturo farinha, açúcar e fécula de batata. Quando jogo os tabletes de margarina ela se voluntaria, e enquanto a massa vai se formando ela narra os últimos percalços, as brigas, os porres, o esvaziamento.

Quando a campainha soa a massa já está pronta, o primeiro tabuleiro já está no forno e Manolo adentra o ambiente. Estamos ambas sentadas nos bancos altos, um deles meio detonado por causa de Ernesto,  o gato. Manolo pega o garfo e começa a achatar as bolinhas de massa (alegoria e adereços para biscoitos amanteigados), ela ameaça jogar canela em cima, eu impeço as barbaridades e ele desabafa:

- Eu não sei o que estou fazendo de errado. Eu cutuco as pessoas certas no facebook, acesso o Grindr, fico bêbado de sexta a segunda, ando sozinho na rua à noite e nada, zero, nem um estupro... 
Elas gargalham. Terminada a função biscoito, ela prepara um chá. Manolo se atraca com a web e começa a flertar, via chat do facebook, com D., que escreve repetidas vezes palavras como “irado” e “maneiro” e sem nem mesmo saber de onde D. tecla, já sentimos o aroma da parafina, do sol, do sal, do mar.

- Eu sou muito boa com flerte alheio. – ela assegura.
- Como é isso?
- É isso. Outro dia uma amiga trocava mensagens com um fulano, e tudo estava quase perdido porque ela não tinha muito traquejo afetivo, saca? Então peguei o celular da mão dela e virei o jogo. Em mais 3 mensagens estava marcado o encontro.
- Você se fez passar pela menina?
- Sim.
- Mas isso não é antiético?!
- Não.
- Mas você está enganando uma pessoa!
- Você é ator, que questionamentos são esses agora? A sua profissão é enganar gente!
- Você se passaria por mim agora?! – pergunta o Manolo, olhos brilhando enquanto alisa as costas de Ernesto, o gato.
- Dãr!

Ela se apodera da cadeira e eu começo a fabular um serviço de flerte personalizado. Imagine: eu estou em casa, chat aberto, abordo um beltrano, a conversa não engata. Nesse momento, num chat paralelo, vou colando o que beltrano diz, dou um background básico pra ela formular a conversa e ela me dá as falas, fabrica tudo o que vou dizer em seguida etc. Já pensei em como seria ao vivo também: um sistema de escuta, um ponto no ouvido. Seria a salvação da lavoura. Flerte sob encomenda. Fim dos suores, dos rubores, das unhas roídas, das frustrações, dos dias seguintes sem histórias pra contar, das bebedeiras por prêmio de consolação. Deliro, devoro biscoitos, quase não percebo quando o Manolo se despede, sai pela porta afoito pra encontrar F., um dos mocinhos com quem ele, ou ela, já não sei mais, teclava. Ainda faltava uma hora pro encontro, mas Manolo queria passar em casa, tomar um banho, dobrar o perfume.

Quando saí da casa dela, depois de encher a cara de chá, depois dela ter fumado quase o maço todo, depois de termos recebido uma mensagem do Manolo dizendo que o cara não era lá essas coisas, reticências, dei a senha do meu email pra ela e combinei que qualquer mensagem que eu recebesse de D., G., J. ou M. deveria ser respondida única e exclusivamente por ela. Eu não tomaria conhecimento do assunto até que ela me dissesse hora, dia e lugar, porque com ela na dianteira, essas coordenadas eram o único desfecho possível. Isto é: se eles algum dia se dignassem a me escrever.

Manolo está batendo ponto: uma vez por semana, pelo menos, ele me telefona:

- Vamos fazer biscoitos?
- Outra vez?
- Ou salada, risoto, petit gâteau, miojo, qual-quer coi-sa! 

Não demora muito e eu começo uma dieta. 



quinta-feira, 12 de julho de 2012

Email



De: Julieta
Subject: s.o.s

Gente,

Estou quase dormindo em cima do teclado. Alguém me conta uma história?

Beijos,
J. 

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Subject: Re: s.o.s

Hoje pela manhã fui perguntar pra diarista, a Odete, porque ela faltou ontem. Odete tem 50 anos com aparência de 60. Ela me disse que estava entrando na menopausa e começou a fazer reposição hormonal, ontem deu algum problema que ela teve uma hemorragia e ficou internada. Eu disse pra ela ir pra casa descansar, pra procurar um ginecologista e tomar cuidado com reposição hormonal, que era um assunto muito controverso. Já ia me despedindo quando ela entrou em prantos dizendo "o pior é que tudo acontece ao mesmo tempo. O Jorge me deixou." Jorge é um homem mais jovem que ela, desempregado e diabético, que ela sustentava há 15 anos. O pior, na verdade, é que eu já sabia que isso ia acontecer. A Mari fica com o V., cuja faxineira é irmã do Jorge, e ela já tinha fofocado para o V., que contou pra Mari, que passou pra mim, que "agora que o Jorge arrumou um emprego, vai largar a Odete". Me sentindo culpada decidi pelo menos ouvir os lamentos da coitada que chorava feito adolescente quando perde o 1º amor. Sem saber muito como lidar, comecei dizendo que homem nenhum merecia que ela ficasse tão pra baixo, que ela era independente, tem Sky em casa e que ia sair dessa. Apelando pra religião, a confortei mencionando que esse mundo dá muitas voltas, que a gente só entende as coisas que acontecem na nossa vida anos depois e que temos que ter fé no que Deus quer para nós.  Quem sabe Jorge não volta? Quem sabe se a saída dele de casa não traria um homem muito melhor? Vendo Odete ainda meio descontrolada, insisto que talvez Jorge nem seja assim tão bom e a tristeza que ela sentia não era da falta dele exatamente e sim da falta de se ter alguém. E foi aí que eu descobri o pior de verdade! Odete me diz que ela sente falta mesmo é do sexo. Que Jorge já não dava muito no couro por conta do descontrole da diabetes e que com sorte eles transavam uma vez por mês. Ela vivia tentando, mas Jorge reclamava que ela era muito fogosa e que depois de uma certa idade ela tinha era que parar com essas coisas. Mas pelo menos, ainda que uma vez por mês, ele esquentava a cama dela antes de dormir e ela sabia que teria a companhia dele todas as noites. Um pouco chocada, só consegui dizer que eu a entendia. Somos todas iguais. 

Como os nossos pais



Eventualmente a gente descobre o que está fazendo de errado e vai à luta. De 1938 pra cá, pouca coisa mudou, e tá aqui a lista pra provar que os nossos dilemas, salvo pequenos detalhes do figurino, ainda são os mesmos.




segunda-feira, 9 de julho de 2012

Astrologia para malogrados


Desde que Clayton Fabio, o astrólogo, falou que o segundo semestre de 2012 abria possibilidades concretas de um relacionamento sólido que ando entre a distração e o desespero. Ele disse setembro/outubro, mas que a pessoa não ia cair do céu e eu devia ficar atenta, dando chance às conspirações estelares. Que dependia de mim ter um par, que num descuido eu podia deixar passar um encontro. Que a primeira coisa que ele via no meu mapa e que gritava dentro de mim era uma necessidade de autossuficiência, e que isso podia não ser bom para o amor. Que eu não me deixava ser escolhida e só queria escolher. Minha analista faria um adendo: que eu só escolho errado.

Mas aos céus e aos fatos.

Se por um lado relaxei, afinal ainda é julho, por outro fiz a matemática. Uma pessoa com a minha lentidão e falta de foco demora de 4 a 5 dias pra perceber que um fulano pode ser interessante. Depois mais uns 2 para, olhando fotos da pessoa no facebook, sacar que sim, ele é charmoso, tem covinhas e uma barba muito atraente que provoca até mesmo certo descompasso coronariano. É assim: paixão retroativa.

Quando entendo que a pessoa tem potencial pra ser amada por mim, e que, de repente, que sabe, teria potencial pra me amar de volta, já se passaram uns 15 dias. Percebam, a contabilidade não está a meu favor. Em 15 dias, pessoas normais se conhecem, se beijam, se lambem. Pessoas como eu param na fase do se conhecer. Eventualmente, a fase do beijar chega com 3 ou 4 meses de atraso. Eventualmente, também, você passa 4 dias na mesma cidade que esse cara, cruza com ele todas as manhãs, tardes e noites e despensa toda e qualquer oportunidade de interação e interlocução. Não é por timidez ou autossuficiência, é por incompetência.

Posto isso, o desespero: se a previsão é de 3 a 4 meses para concretização de flertes (e não temos nenhuma garantia disto, aliás, no meu caso, a coisa tem acontecido bienalmente), significa que tenho que começar a agir mesmo em julho, pior: que deveria ter começado a concentração no mês passado. Já estou um mês retardada, e achando que todo e qualquer humano do sexo oposto pode ser um candidato a futuro namorado. É muita pressão, e ansiedade é algo que se vê: na cara, no suor, nos lábios cheios de buracos e feridas, porque substituí o cigarro por arrancar aos poucos minha própria boca.

Não sei o que fazer. Já pensei em ligar pra Clayton Fabio, o astrólogo, pra saber mais detalhes. Umas amigas que se consultam há tempos com ele disseram já ter pedido datas, e elas foram certeiras (as datas). Burrice minha não ter feito o mesmo. Quando Clayton Fabio, o astrólogo, disse setembro/outubro eu devia ter pedido pra ele ser mais preciso. Eu devia ter explicado, também, esse meu problema de timing e de distração, o que só reforça o fato de precisar de datas, porque aí sim eu me programaria, com meses de antecedência, pro dia que seria o dia de conhecer o possível amor. Até treinaria umas frases. Compraria um vestido novo, pararia de arrancar as peles dos lábios naquela semana pra não parecer uma pessoa que inflige sofrimento a si mesma. Ou até, quem sabe, de repente, não tomava coragem e convidava o rapaz pra tomar um drink ou um sorvete.

Pra completar, a voz da analista ressoa na minha mente, e todos esses pretendentes platônicos já são logo rotulados como erros, e fico assim, entre o adeus e a contrapartida. A matemática final é trágica: depois de 3 ou 4 meses curtindo uma taquicardia amena, concluo que não sou confiável, desisto de tudo, maldigo Clayton Fabio, o astrólogo, refaço as contas, conheço outro mocinho promissor, escuto de novo a gravação, lembro que na Flip só fui abordada por Hare-Krishnas que queriam me vender seus livros, penso que as últimas cantadas que recebi foram algo entre a catástrofe e o surrealismo, decido que tenho mesmo muita razão em querer escolher. Autossuficiência. Clayton Fabio, o astrólogo, é enfático no registro. Vou por essa tendência. Boa noite.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Heterossexuais não praticantes # 01



[]
Fernando nunca tinha abridor de vinho em casa, o que nos obrigava, em algum momento, a: vestir rostos de simpáticos (somos muito, ele bem mais que eu), calçar sapatos (nem que fossem pantufas), bater na porta ao lado: será que você pode emprestar... e a frase nem se completava porque o vizinho já sabia, e todos já sabiam, porque todo domingo era assim, feito de Ipanema, sofá, Cao Guimarães e da nossa incapacidade de comprar um abridor de vinhos no supermercado da esquina, e acabávamos dormindo depois da terceira taça ou do segundo curta, o que viesse primeiro, não que fossem ruins (eram excelentes), era só que a gente gostava muito de ficar sozinho.

[]
Não tem mais espelho no teto do Panda, me contaram, e essa não é a única mudança promovida pela reforma. Livre dos excessos, o Panda é quase de bom gosto, não fosse pelo detalhe da acústica, que não foi levada em consideração na obra. Não bastassem as neuroses, a suspeita de estar fazendo tudo errado, o quarto é invadido por gemidos e urros de gente que não se furta a mostrar ao mundo (e a duplas duvidosas) de que é feita a sua carne (carnaval). Desistem no meio, dessa vez convencidos de que estão fazendo tudo errado. Depois de algum tempo analisando os gemidos, gritos, afirmações, apelidos e até mesmo os sussurros, que também eram audíveis, concluem que sonoridade não necessariamente é registro do que vai verdadeiramente dentro e que sexo, como quase tudo, sofre de excessiva espetacularização, e que aquele casal só devia ir ao Panda, por motivos óbvios. Concordo. Tem muito teatro por aí e a gente, talvez, seja um tanto recalcado. 

[]
Me abraça na porta do bar, me chama de gostosa no ouvido, pergunta quando vamos nos encontrar de novo. Mas já estamos encontrados, por que não agora? Mas não é tão fácil assim, todo mundo é um Bartleby, o mundo é um moinho e em vez de amar eu vomito vodca no banheiro, ele enche a cara muito mais.Na minha casa, com uma ponte aérea entre nós, ligo pro Fernando, e juntos esvaziamos uma safra 2009 por skype. Acordo e é domingo, é março e é muito pior que agosto e tem uma mensagem de Belo Horizonte que diz “da janela do meu quarto chove pacas”, da minha chove muito mais.

sábado, 30 de junho de 2012

Abertura


Foi no final de dezembro, num desses encontros de celebração de fim de ano. Havia de fato o que se comemorar. Éramos muitos, mas naquele momento éramos apenas 4, e 3 de nós foram rotulados como “socialmente equivocados”. A pessoa que cunhou o termo não se excluiu da definição. E passamos a pensar a vida sob esses parâmetros. É bom pertencer a uma tribo.

Logo depois, em janeiro ou fevereiro, o autor da expressão estava namorando L. Eles se conhecerem numa festa de Réveillon onde havia cerca de 10 pessoas, das quais 8 eram lésbicas. Mesmo que não tivessem se curtido, acho que era obrigação deles se juntarem, e eles entenderam a mesma coisa. Talvez até procriem. Perdemos um.

Aos poucos fui percebendo um certo equívoco no campo dos afetos, e por mais que o raciocínio lógico entre em cena em dias seguintes, não tem jeito e é como diz o bloco: simpatia É quase amor. Penso em todos os livros de autoajuda que não se escrevem, em todos os grupos de apoio que não se criam, em todo o dinheiro de análise que não se economiza, em todas as histórias que não se contam e portanto conclamo aqui todos os equivocados, os tímidos, os mongos, os que gaguejam, os que suam e ficam vermelhos de nervoso, os que têm dor de barriga antes de um encontro, os que saem mais cedo das festas, os que nem conseguem chegar nas festas, os que bebem pra esquecer, os que bebem pra paquerar, os que sofrem de mudez súbita, as que são lindas mas sempre ficam com batom no dente, os que são charmosos mas sem querer falam cuspindo, os que fazem meios convites, os que desviam o olhar, os que tentam e-mails no dia seguinte pra tentar recuperar o flerte, os que curtem tudo o que o outro posta no facebook, os que são stalkers, os que queimam a largada, os que são especialistas em ouvir conversas na praia, os que vão ao cinema sozinhos, os que almoçam com livros, os que acreditam em músicas, os que fantasiam, os que sofrem de dor de cotovelo, os que torcem pelo divórcio alheio, as que acham que "ele só pode ser gay", os que são pra casar, as que são pra casar, os que só querem sexo casual, os que sempre se apaixonam pelos parceiros de sexo casual, os que instagramam seus gatos seus pratos seus pés, os que sofrem de joanete no  inverno, os que dão preferência ao travesseiro, os que dormem 8 horas por noite etc.

O mundo é nosso, e duas coisas são certas: only love can break your heart (YOUNG, Neil). E tudo se costura.